Fábio Roberto Notícias // Ilhéus . Bahia

No dia da Mulher, lembrar de Fernanda é um pedido de socorro de Ilhéus contra a violência

Fernanda foi morta com tiros de pistola na cabeça.

Neste 8 de março, estamos a três dias de completar dois meses que Ilhéus perdeu uma jovem inteligente e corajosa chamada Fernanda Pereira, que tinha 24 anos de idade e a vida inteira pela frente. A infâmia aconteceu na madrugada de 11 de janeiro, em um posto de gasolina da Praça Cairu.

A imagem chocou a sociedade, por mais que os ilheenses sejam forçados a se acostumar com outras cenas parecidas. As próprias estatísticas oficiais informam que ilhéus é uma das cidades mais perigosas do estado, principalmente para as mulheres.

No ano passado, foi a terceira cidade baiana com mais feminicídios, atrás apenas da capital e de Porto Seguro, e a quarta em homicídios em geral de mulheres. Neste ano, os números continuaram em alta e já incluiu Fernanda e outras mulheres.

As perdas são absolutamente dolorosas para as famílias e os amigos, mas, quando se olha cada caso mais de perto, a sociedade também se vê diante de uma dor ainda maior, que é a de não ter garantida a proteção aos sonhos de uma mulher honesta e batalhadora.

Em Ilhéus, qualquer um pode morrer, até mesmo dentro de casa, como vimos recentemente. Fernanda mesmo tinha horror a crimes e criminosos e se orgulhava da criação que recebeu da mãe, uma evangélica que sustentou e sustenta a família com o esforço do trabalho pesado das faxinas que encara com dignidade.

Quem olhar a ficha de Fernanda nos registros oficiais vai constatar que ela foi punida justamente por defender com coragem o sonho de uma família matriarcal feliz. E nunca para obter qualquer tipo de vantagem desonesta.

Só para se ter uma ideia da profunda honestidade dela, em 2022 Fernanda tomou um chá gelado na pousada Doce Desejo, em Acuípe, depois de Olivença, e esqueceu de pagar. Ela não descansou enquanto não voltou lá para quitar a dívida. No começo da pandemia, um conhecido fez um pagamento a um comércio e mandou um pix errado de 200 reais para a conta dela. Fernanda percebeu na mesma hora e devolveu o valor.

Logo ela, que não tinha dinheiro para realizar o sonho de continuar os estudos. Há poucos meses, havia pedido a um amigo para pesquisar quais cursos havia no Sesi, a escola que ela admirava e que fica na Rodovia Jorge Amado Ilhéus-Itabuna.

Futura arquiteta
Profissão mesmo ela sonhava desde a adolescência era com a Arquitetura. Sonhava tanto que, atendendo a um pedido, desenhou a fachada de uma casa rica e ganhou 200 reais pelo trabalho. Sabe aquelas fachadas grandes com pergolados? Essa pessoa fez o mesmo pedido para um arquiteto profissional em São Paulo, e o trabalho de Fernanda se revelou tão bom quanto o que foi feito pelo profissional paulista.

Em janeiro de 2023, um amigo enviou a ela a inscrição para os minicursos gratuitos da Faculdade de Ilhéus. Mas, naquele momento, em dificuldades, ela não teve dinheiro para ir até a faculdade.

Também ficou frustrada em 2021, quando, depois de semanas de estudo, não conseguiu ir fazer a prova do Enem na UESC. Naquele domingo, Fernanda acordou cedo, mas o ônibus não veio e ela não tinha dinheiro para o Uber.

Era a artesã das mandalas
Enquanto não seguia os estudos, praticava a arte de desenhar mandalas, um talento que mostrava em um perfil no Instagram. Os desenhos na rede social atraíam a atenção de artistas de outros estados. Ela se orgulhava de ter artistas famosos que a seguiam para se inspirar nos desenhos que ela pintava. Tentou permutar um espaço de vendas de mandalas em Ilhéus, mas não conseguiu sustentar o negócio por tempo suficiente para encontrar compradores.

Um amigo a conectou com vendedores de arte de Porto Seguro. Fernanda voltou de lá com os contatos, mas não teve tempo de levar o sonho adiante. Estava ocupada tentando sobreviver em bicos em Ilhéus com patrões exploradores e que não lhe pagavam direito. Alguns tentaram enganá-la, o que a irritava bastante. “Esses são os trabalhos que um jovem arruma em Ilhéus”, lamentou ela em uma mensagem a um amigo.

Em novembro, dois meses antes de ser morta, disse ao amigo que estava no negócio de venda de roupas e que estava muito feliz e com bastante fé no novo ano de 2024. “Tenho tantas clientes e são maravilhosas”, disse. No dia do aniversário de 24 anos, 18 de dezembro, agradeceu muito a esse amigo por ter se lembrado da data. Quando soube da morte do pai desse amigo, no ano passado, ela mandou um áudio choroso, tentando consolá-lo, com a música “Estrelinha”, de Di Paullo & Paulino: “Enxuga esse rosto e vem aqui fora como de costume…”

Boa alma, se emocionava com os animais, ficava triste pela morte de gatos de rua que ela alimentava e ficou arrasada porque na pousada Navegantes o cachorro comeu o pavão. Amigos a admiravam por isso.

De boa família e admirada
Amigos e admiração ela tinha. Recebeu homenagens carinhosas também do valoroso time do Barcelona de Ilhéus, com direito a minuto de silêncio nas partidas. Para ela, Carla Serafim, da Secretaria Municipal de Políticas para Mulheres, fez uma nota corajosa e precisa protestando contra a normalização da violência contra as mulheres.

Fernanda foi essa mulher alvo de um crime bárbaro e covarde, resultado da certeza da impunidade dos que podem puxar uma arma e em seguida atribuir à vítima a culpa por o gatilho ter sido disparado. A não ser que uma câmera registre a verdade de forma inquestionável. Fernanda foi acusada e punida muitas vezes por registros oficiais que se aproveitaram de não haver uma câmera a favor dela. E, até quando havia essa câmera, como naquele momento fatal, quase tentaram tirar dela a verdade que lhe dá razão.

A punição no caso de Fernanda será um grito necessário para fazer diminuir a violência nesta cidade, que neste ano voltou aos horrores que São Jorge dos Ilhéus já viu algumas vezes, como no fim dos anos 20.

Magra, menos de 50 quilos, fumante, tinha horror a drogas. Em 2022, sofreu uma reação alérgica de um medicamento. Filha de uma supermulher, foi socorrida com amor pela mãe. A um amigo que trabalha em uma emissora de TV em São Paulo ela relatou emocionada: “Mãe é tudo”. O amigo respondeu a ela semanas depois, pessoalmente: “Gostei da frase. Família é tudo. Bom para virar nome de novela”.

Fernanda Pereira era uma mulher ilheense filha de família honesta e batalhadora, tinha 24 anos de idade e uma vida inteira pela frente.

Texto de José Nilton, jornalista.


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